terça-feira, 18 de setembro de 2012

EXTENSÕES COMPARADAS DOS PAIS PROVEDORES E DA PROLE: FUNÇÕES DE DOMÍNIO E VIAS DE AUTONOMIA






Prof. Paulo Sergio Teixeira


EXTENSÕES COMPARADAS DOS PAIS PROVEDORES E DA PROLE: FUNÇÕES DE DOMÍNIO E VIAS DE AUTONOMIA


Resumo:

A sociedade como um todo está, ao que indicam as observações, habituada a obedecer uma ordenação hierárquica em conformidade aos padrões estabelecidos de forma irrefletida, ou mesmo, em meio a um permanente conflito entre tradição e renovação. Este ensaio propõe uma reflexão sobre a possibilidade da mesma sociedade seguir esta ordem de hierarquia nascida e forjada inicialmente no núcleo familiar. A partir daí, o padrão hierárquico inicial poderia alcançar extensões mais amplas, permanecendo introjetadas na vida dos indivíduos que compõem os vários setores sociais de modo a reproduzi-lo. Parece haver, de forma mais ou menos comum, a tentativa consciente ou não de superação das formas de poder hierarquizado, num exercício de enfrentamento que deve constar de algumas vias possíveis. A resposta a esta aparente constante pode ser dada, dentre outros campos funcionais, por aqueles que buscam decifrar os mecanismos sociais a fim de cumprir com o papel do esclarecimento.
Palavras-chave: Hierarquia social. Autonomia do indivíduo. Evolução e conscientização da sociedade.

  
COMPARED EXTENSIONS OF PARENTS AND PROVIDERS PROLE: FUNCTIONS OF THE FIELD AND WAYS OF AUTONOMY


Abstract:

Society as a whole is that the observations indicate, accustomed to obey a hierarchical ordering in accordance to established standards so thoughtless, or even in the midst of an ongoing conflict between tradition and renewal. This paper reflects on the possibility of this society to follow this order of hierarchy originally born and forged in the nuclear family. Thereafter, the initial hierarchical standard could achieve wider reaches, introjected remaining life of the individuals in various social sectors in order to reproduce it. There seems to be more or less common, the conscious or unconscious attempt to overcome the forms of hierarchical power, an exercise in confrontation that must appear in some possible ways. The answer to this apparent constant can be given, among other fields functional, for those who seek to unravel the social mechanisms in order to fulfill the role of clarification.

Keyords: social hierarchy. Autonomy of the individual. Evolution and consciousness of society .




  • Mãe:
  • As grandes deusas mães foram, todas, deusas da fertilidade [...]. Encontra-se nesse símbolo da mãe a mesma ambivalência que nos da terra e do mar: a vida e a morte são correlatas. Nascer é sair do ventre da mãe; morrer é retornar à terra. A mãe é a segurança do abrigo, do calor, da ternura e da alimentação; é também, em contrapartida, o risco da opressão pela estreiteza do meio e pelo sufocamento através de um prolongamento excessivo da função alimentadora e guia: a genitora devorando o futuro genitor, a generosidade transformando-se em cooptadora e castradora. (CHEVALIER; GHEERBRANT, p.580, 1999).


  • Pai:
  • Símbolo da geração, da posse, da dominação, do valor. Nesse sentido, ele é uma figura inibidora; castradora, nos termos da psicanálise. Ele é uma representação de toda forma de autoridade: chefe, patrão, professor, protetor, deus. O papel paternal é concebido como desencorajador dos esforços de emancipação, exercendo uma influência que priva, limita, esteriliza, mantém na dependência. Ele representa a consciência diante dos impulsos instintivos, dos desejos espontâneos, do inconsciente; é o mundo da autoridade tradicional diante das forças novas de mudança. (CHEVALIER; GHEERBRANT, p.678, 1999).


O grande pai, a grande mãe: enfrentar, ficar ou fugir?

No paradigmático “Complexo de Édipo”, formatado primeiramente pelo Pai da Psicanálise, descobriu-se que o filho desenvolveria um desejo inconsciente de eliminar o primeiro grande competidor que a figura do pai representava. Do mesmo modo, também a filha em relação à mãe, acabaria por estruturar sua consciência a partir do mesmo mecanismo inconsciente.

Orientação avançada para a época, inicia as grandes explicações sobre a estruturação da consciência humana, mas não podemos perder de vista que tal ideia foi projetada em meio às experiências e observações de uma sociedade essencialmente patriarcal e conservadora. É bem provável que se Freud pertencesse a sociedade tradicionalmente matrilinear, como é comum dentre os muitos povos africanos, certamente teria mais elementos para ampliar sua tese.

  • Os homens americanos não sabem como fazer o amor... Os homens americanos entram no casamento sem a menor experiência para enfrentar coisa tão complicada. Na Europa, tudo é diferente; os homens tomam a iniciativa e é assim que deve ser. (RUITENBEEK, 1969, cit “Fragments of na Analysis with Freud, de Joseph Wortis”).

Acredito que as relações entre indivíduo/família, estudante/professor, cidadão/Estado sejam passíveis de uma analogia que pode oferecer amplas possibilidades de estudo. Partindo-se do convívio familiar como fator determinante do progresso espiritual do indivíduo e, por conseguinte, da sociedade como um todo, é possível verificar-se que no seio da família é que estas tais relações ganham vulto.

  
  • [...] na história de cada indivíduo, esteve presente a relação pai-filho. Embora presuma-se que, na vida política democrática, os eleitores sejam seres humanos maduros, não se pode ignorar a existência de um vestígio da relação entre pais e filhos, o que, de resto, possui vantagens bastante óbvias. Na eleição democrática, o que ocorre em certa medida é que o povo elege pais temporários, o que significa que reconhecem o fato de que, de certo modo, eles ainda permanecem crianças. (WINNICOTT, p.242, 2001).



A concepção de um “grande pai”, de uma “grande mãe”, introjetada ancestralmente desde a célula familiar nos componentes do organismo social humano, parece ser a base em que se ergueu toda lógica hierarquizante que há tempos nos é tão própria:

   

Nasce destas relações originais, um primeiro sentimento de inferioridade ou de submissão, encontrando em seu ápice, seguindo as letras de Freud, o desejo inconsciente, num primeiro momento, da eliminação ou superação dos provedores como forma radical de enfrentamento e libertação rumo à exclusividade. O que vem depois, sem maiores deduções, é um período subsequente de adaptação e convívio.
  • O complexo de Édipo vai cada vez mais revelando sua importância como fenômeno central do primeiro período sexual infantil. Depois desaparece, sucumbe ao recalcamento, como dizemos, e é seguido do período latente. Não vimos ainda, todavia, claramente quais são as causas que provocam seu fim. A análise parece atribuir este às decepções dolorosas sofridas pelo indivíduo. [...] O complexo de Édipo malogrará por si mesmo a conseqüência de sua impossibilidade interna. (FREUD, [s.d.], p.23)

Dentro disso a “convivência” que se desdobra nas relações sociais deve consistir em si apenas um único caminho possível neste sistema. Seguindo a lógica do investigador, como caminho natural, é perfeitamente possível ampliar este conceito sobre os mesmos mecanismos que moldam a consciência humana. A postura de aceitação em uma relação de conflito pode ser assim somente um de três caminhos possíveis ao indivíduo junto ao grupo, ou numa realidade mais ampla, do indivíduo autônomo em meio à sociedade. Mas devem restar, além dessa postura de conformação, o “enfrentamento” ou a “fuga”.

É possível que uma posição de aceitação esteja estruturada, constantemente, com desejos esporádicos e inconscientes, ora de enfrentamento e revolta, ora de fuga e abandono. Neste caso, parece que a efetiva fuga e/ou enfrentamento, são na maioria das vezes suplantadas pela amortização dos ânimos radicais, ou, em outras palavras, pelo esforço no sentido de um convívio direto.

Parece estar justamente aí, no recalcamento expresso no ato da convivência, o exercício de aperfeiçoamento da consciência sobrepondo-se e vencendo os instintos incontroláveis. Desta forma, a postura de suportação nas relações sociais pode consistir em fator que leve verdadeiramente à evolução de nossa consciência.

Tão extremo quanto o rebentar do enfrentamento, está a via mais incerta de todas: a expansão, a fuga; aventura de um mítico heroísmo rumo ao incerto. E veja-se ainda que, na natureza, o número dos organismos que fogem é sempre superior e enveredam-se por extensões espaciais mais amplas, embora os predadores prevaleçam mais fortes e afortunados em seu próprio espaço territorial.

Consigo ver a partir disso, uma ordem de três caminhos naturais sobre o organismo social humano:

1º) enfrentamento/substituição

2º) convívio/somatização

3º) fuga/expansão


Nos primórdios da humanidade, dos primeiros grupos sedentários é certo que famílias pioneiras tenham se deslocado em busca de nova vida, estabelecendo-se em paragens afastadas dos grupos originais. Não é difícil concluir por aí, que tal possibilidade só poderia ser viável devido à amplitude espacial do território. Eis um elemento essencial que pode definir em muito os ânimos do coletivo humano.

O nosso característico uso consciente do intelecto, faz-nos, desconfio, desprezar ou desacreditar nossa parcela real movida pelos resquícios do instinto. Quando a fuga já não é uma via tão simples, bem como o enfrentamento rumo à exclusividade parece-nos cada vez menos possível nas sociedades contemporâneas, tende a prevalecer cada vez mais os esforços na suportação do convívio, e aí, certamente, produzindo como efeito a aceleração e o aperfeiçoamento superior da consciência, e no caso, de uma consciência coletiva, ou de uma superconsciência da grande prole. Material exemplar dessa hipótese talvez seja possível se averiguar: a) no aparelhamento das grandes cidades e no espírito social de época que as regem; b) na institucionalização e na evolução das classes funcionais, e; c) na progressiva propriedade evolutiva na ampliação da percepção de si e do entorno, por cada indivíduo e pelo coletivo humano.

Parece tratar-se de uma propriedade de adaptação viabilizada apenas por circunstâncias que se desenvolvem num ambiente de convívio.

Isso pode significar algo como uma subfase de resfriamento que se desenvolva quando o grupo se veja estagnado em uma ilha repleta e limitadora. Uma subfase de resfriamento que, por sua vez, representa a premissa de uma outra subfase decorrente; a de um de dois extremos radicais onde, segundo esta lógica, vejo poder extrapolar para duas possibilidades:

1. a epidemia, o canibalismo, a guerra;

2. o alargamento das fronteiras, a expansão.


Expansão é a lógica do universo desde o Big-Bang; expansão é o rumo que seguem os organismos todos no ambiente; expansão é o que, desde uma África longínqua, hominídeos vêm empreendendo incansavelmente através dos tempos sobre todos os continentes. A lógica da expansão parece ser, portanto, o verdadeiro e grande objetivo da natureza, e o aperfeiçoamento de seus elementos, fator essencial para garantir e acompanhar esta expansão, mas também, fruto resultante neste processo.

Os movimentos do colonialismo europeu sobre o Novo Mundo, nos fins da Idade Média européia, pode ser exemplo poderoso de um período de latência seguido de expansão territorial promovida pelas grandes navegações.

A Europa, forte em armas, tecnologias e, principalmente, dentro de um padrão já atingido de acúmulo e expansão progressiva, ao eclodir, choca-se com um outro padrão próprio dos povos americanos: o coletivismo sustentado em meio a sociedades frias.

Mas vale aqui observar que aquela ideia romântica do bom selvagem em equilíbrio com a natureza exuberante, seria talvez uma fase, um estágio que, apenas por uma questão de tempo histórico, estaria, mais cedo ou mais tarde, fadado a evoluir para um processo similar ao das grandes civilizações da antiguidade clássica. Tal sugestão é facilmente concebida ao se verificar os processos mais complexos dos povos pré-colombianos, em especial, dentre os mexicas.

Esta lógica de expansão e acúmulo, seguida primeiro pelos povos dominadores e logo incorporada pelos submetidos, avançou desprezando qualquer tipo de mecanismo que pudesse desenvolver paradigmas eficientes de contenção predatória. O resultado dessa evolução tresloucada é o limite natural estabelecido pelo preenchimento quase total do espaço territorial. Acredito tratar-se aí da revisitação de um limite condicionador à sociedade humana: a inflação do território. E agora, o que pensar da globalização?

Num momento em que as tecnologias presentes não possibilitam dar sequência ao mesmo projeto embasado no acúmulo e na expansão, eis que o ativismo ambiental insurge como que para assegurar e preservar os intentos da espécie e de tudo que a acompanha e lhe diz respeito: é o esforço da suportação de um convívio coletivo, aparentemente ainda não emergente, e que pode indicar um novo período de resfriamento ou de contenção. Nisso a Antropologia, a Ecologia e a História Ambiental, tornam-se excelentes métodos de estudo, pois nelas hão de se resgatar a condição original e histórica de interação do homem com o ambiente, fato até então desconsiderado pela já ultrapassada cultura consumista.

Importa agora calcular o tempo desta mais recente subfase, pois entre guerra e expansão, o período de um provável resfriamento deve ter um limite previsível. Felizmente, o universo nos é infinito, e devemos ficar todos satisfeitos por não estarmos limitados ao interior de uma bolha. Sabemos que o tempo está sempre a urgir, mas também que quando tudo parece perdido, os produtos revolucionários da tecnologia surgem como uma alternativa fenomênica a nos surpreender.


As bênçãos dos provedores e a prole renegada

É comum ouvir dos membros de nossa sociedade e mesmo entre colegas professores da rede pública, frases um tanto polêmicas como essas: “Quando eu e meus irmãos éramos pequenos, nós respeitávamos muito a família. Bastava meu pai olhar e nós já nos encolhíamos.”; ou “No meu tempo, quando eu estudava, os professores eram respeitados. Existia respeito! Mas, hoje?!...”; ou ainda: “No tempo dos militares é que era bom! As pessoas não faziam o que queriam; a polícia era respeitada! Tinha até toque de recolher, mas não tinha bandido nem vagabundos nas ruas...”.

É claro que para a sociedade de hoje, estes chavões meio nostálgicos não podem ser traduzidos como pérolas de dignidade. O espírito que reinava naquela família, naquela escola, naquela sociedade não era o do respeito, e sim, o da intimidação e do medo. Mas demonstra também o desejo explícito de ordem que o senso comum geralmente aspira a partir de uma potência externa, superior e eleita.

Talvez esta postura consista em uma posição um tanto cômoda, porque procura lançar a responsabilidade que poderia caber à própria sociedade aos cuidados de um ente maior, de um governo verdadeiramente paternal, forte, tirano se necessário, mas paternal. É a substituição do pai provedor de família por uma sua outra variante de representação que venha a nos confortar.

Aqui, o que procuro apontar é que a posição primeira de submissão a um ente maior e ordenador, está normalmente tão arraigado ao modus vivendi da sociedade quanto o respeito incondicional, involuntário, a um pai ou mãe de família por seus filhos.

É possível ainda que esta ordem hierárquica seja uma condição universal de propriedade humana, já que a criança que não foi criada por lobos, veja-se dependente de seus provedores até que consiga prover-se a si mesma, e que guardará, posteriormente, um respeito incondicional a esta relação de hierarquia condicionada pelo convívio em grupo. E aqui menciono ainda a possibilidade de haver uma via de mão dupla nessas relações, já que o grande pai/a grande mãe tanto pode mais ou menos exercer o comando, quanto a prole, legitimar, em maior ou menor grau, o poder reconhecido nos pais.

A grande representação de poder, depois do pai e da mãe de família, como, por exemplo, encarnada na figura do Estado maior, constitui-se em uma extensão real da primeira máxima hierárquica. Algo assim, como se o ser humano que veio ao mundo, tivesse nascido, acima de tudo, para ser subordinado enquanto filho ou filha: primeiro entre a família, depois em meio à sociedade e perante o Estado. E neste sentido, vale aqui destacar o quanto a instituição escolar é fundamental, tanto no processo de substituição do provedorado, quanto na perpetuação do status quo, ou ainda – ...e como não considerar -, em casos bem particulares, no fomento de sua própria negação também.

É bem possível que nas relações sociais existam mecanismos em si, de uma orientação natural que desenvolva o enfrentamento e a substituição do grande pai, da grande mãe, quando estes se mostrem algozes opressores, injustos, castradores. Verificando registros históricos mais evidentes, é possível concluir que a representação do grande provedor, ao expressar sua face de tirania, faz surgir, em meio à prole, um sentimento crescente de revolta que fatalmente lançará empenhos contrários, alterando inclusive suas funções ordenadoras a fim de eliminá-lo ou substituí-lo. Como não mencionar a fatídica eliminação do pai-realeza empreendida por Robespierre e seus todos compatriotas, ou mesmo, a substituição de um pai-divinizado e secular nos esforços de Martinho Lutero e tantos outros protestantes?

Quando Freud denunciava os esforços inconscientes do indivíduo na forma extrema de um parricídio, Marx já o tinha proposto por outras vias e em maior escala através da morte do grande pai-Estado, ou, em outras palavras, na militância por uma sociedade sem Estado, a comunista. Perseguindo o mesmo viés de enfrentamento e libertação frente às limitações impostas pelo grande pai, Friederic Nietzsche decretou o próprio assassinato de Deus:

  • Perante Deus! Mas agora esse Deus morreu! Homens superiores, esse Deus foi o vosso maior perigo. [...] Homens superiores! Só agora vai dar à luz a montanha do futuro humano. Deus morreu: agora nós queremos que viva o Super-Homem. (NIETZSCHE, 2011, p. 238-239)
É interessante que uma postura de enfrentamento surja sempre para neutralizar ações de prostração da prole, mas parece prudente não se propor a eliminação das funções ordenadoras de um sistema social, no lugar de sua substituição, mas com o cuidado de não esquecermos “...tiraram os donos da fazenda e colocaram lá os porcos...” (ORWELL, 1999). Pode ser conveniente, primeiramente, equilibrar ou renovar tais relações num movimento ascendente, onde o que está em jogo, é justamente seu aperfeiçoamento que reconhecemos, em último caso, ser o de justiça, respeito mútuo, transparência e clareza nos objetivos das partes e nos interesses do conjunto.

De modo similar, antes de investir energias na eliminação categórica de um deus histórico, por exemplo, acredito ser mais emergencial implementar, em todos os campos sociais, novas interpretações no intuito de se garantir a gradual emancipação através de um progressivo esclarecimento da prole representada, que aliás, entendo merecer tanto respeito quanto todos os grandes pais provedores de nossa estrutura.

E agora, aqui fica mais fácil perceber que os esforços na direção de uma emancipação consistente é o que sempre motivou os contestadores das sociedades e é o que justamente vem se operando na história da humanidade, tais como sínteses permanentes de um embate constante entre pais e filhos representados, ou, entre tradição e renovação. Mas o que parece certo é que tanto os provedores quanto a prole se aperfeiçoam e se recompõem na profusão desses embates.

Por fim, uma consideração: “Quando toda a sociedade contemporânea vem passando por mudanças estruturais radicais, em especial aqui mesmo no Brasil, como no caso da maior participação produtiva da mulher na sociedade, ou ainda, na sua nova liderança financeira e familiar; e num momento ainda em que o indivíduo ganha mais autonomia, mais acesso às informações, maior participação nas decisões sociais na diversidade de seus âmbitos; enquanto tudo isso está acontecendo, entre outros elementos que julgo não caber aqui, a sociedade parece estar subindo um degrau a mais rumo à assunção de tudo que lhe diz respeito, e é sempre essa a direção que nos importa – como aconteceu noutros momentos da história -; um degrau mais distante daquele bastião de uma autoridade intransigente, distante, repressiva e inquestionável. Trata-se da lancinante epopéia de uma autonomia verdadeiramente democrática. É a extensiva e dura forja da auto-assunção da prole representada. Talvez, o pivô de todos os movimentos sociais humanos, permanente, constante, até que não haja mais necessidade de se perpetuá-lo”.


BIBLIOGRAFIA:

ARTIGAS, Mariand. Filosofia da natureza. Trad. José Eduardo de Oliveira e Silva. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência “Raimundo Lúlio”, 2005. 462p.

CAVALCANTI, Raïssa. O casamento do sol com a lua. Uma visão simbólica do masculino com o feminino. São Paulo: Cultrix, 1987. 151p.

CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Coord. Carlos Sussekind. Trad. Vera da Costa e Silva; Raul de Sá Barbosa; Ângela Melim. 13ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1999. 996p.

COLMAN, Arthur; COLMAN, Libby. O pai. Mitologia e papéis em mutação. Trad. Adail Ubitajara Sobral. São Paulo: Cultrix, 1988. 265p.

FREUD, Sigmund. Totem e tabu, Trad. J. P. Porto-Carrero; Ensaios, Trad. Odilon Gallotti e Gladstone Parente. Rio de Janeiro/Porto Alegre/Curitiba/Belo Horizonte/Recife/Bahia: Delta [s.d.]. (Col. Obras completas de Sigmund Freud, v. XIV). 239p.

LÉVI-STRAUSS, Claude. O cru e o cozido – mitológicas. Trad. Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Brasiliense, 1991. 376p.

NIETZSCHE, Friederic Wilhelm. Assim falou Zaratustra. São Paulo: Martin Claret, 2011. (Col. A obra prima de cada autor). 272p.

ORNSTEIN, Robert. A evolução da consciência. De Darwin a Freud, a origem e os fundamentos da mente. 2ª ed. Trad. Carlos Eduardo Silveira Marques e Ieda Moriya. São Paulo: Best Seller, 1991. 363p.

ORWELL, George. A revolução dos bichos. Trad. Heitor Ferreira. 59ª ed. São Paulo: Globo, 1999. 135p.

RANGEL, Diva Farret; NOLL, João Francisco; CAMARGO, Yara Varela de. Mitos e símbolos. Blumenal: FURB, 1995. (Col. Fio do Mestrado, 8). 51p.

RUITENBEEK, Hendrik M. O mito da masculinidade. Trad. Gilberto B. Oliveira. São Paulo: Ibrasa, 1969. 214p.

SELL, Carlos Eduardo. Sociologia clássica – Marx, Durkheim e Weber. Petrópolis: Vozes, 2009. (Col. Sociologia). 160p.

SOUSTELLE, Jacques. Os astecas na véspera da conquista espanhola. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. (Col. A vida cotidiana). 313p.

WINNICOTT, D. W. A família e o desenvolvimento individual. Trad. Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Martins Fontes, 2001. 247p.

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

O PODER NAS REPRESENTAÇÕES E O FRAGMENTÁRIO DAS
AÇÕES LIVRES: UMA CONTRIBUIÇÃO AO DESVENDAR DOS
PROCESSOS SÓCIO-HISTÓRICOS E EDUCATIVOS

Paulo Sergio Teixeira
Santos/SP, 29 de agosto de 2011.



Resumo
Assumir a educação através de seus principais representantes (a classe dos professores) pode significar uma ação necessária, urgente e que as atuais condições sobre o país, mais do que nunca, parecem permitir. Para colaborar na composição de um conjunto de ações profícuas neste sentido, é imprescindível que consigamos superar o atual nível de consciência rumo ao desenvolvimento superior de nossa verdadeira função social. Este artigo propõe uma reflexão em torno dos nossos mais recentes processos sócio-históricos envolvendo a educação, onde o professorado, em especial o da Rede Pública, facilmente se identificará com os fatos, podendo a partir daí, formar uma importante opinião a respeito de sua própria prática e de seu papel no corpo social.

Palavras-chave: História; Educação; Sociedade; Teoria e ação política dos professores.



Abstract
Take education trough its main representatives (the class teacher) can mean a necessary action, urgent and that the current conditions on the country, more than ever, seem to allow. To collaborate in composing a set of proficuas action in this sense, it is indispensable that we overcome the current level of consciousness towards the grater development of our real social function. This articles proposes a reflection on our most recent social historical processes involving education where the teachers, especially in public sector, easily identify themselves whit the facts may give birth to there form an important opinion about their own practice and tahir role in the social body.

Key words – History; Education; Society; Theory and political action of teachers.





Sobre direitos, necessidades e continuidades na prática do ensino

Se de Sócrates, em sua paidéia maiêutica; de Platão, na lógica do inato e na academia dos sábios; ou de Aristóteles, em sua política dotada de ética partiram os primeiros insights significativos, julgamo-nos capazes de verificar que a aspiração da ascensão social e da sonhada equidade humana, é já uma tradição presente desde um mítico Caim, que por meio da violência e da astúcia, resolveu o primeiro ato de vantagem despótica.

Que instrumentos teria usado este suposto Caim para sobrepujar seu irmão, sua vítima? Teria sido ele um mero quebra-nozes? Um feiticeiro? Um guerreiro? Um escriba das leis? Político? Comerciante? Certamente não era um agricultor, ou artífice, ou médico, ou contador de histórias, porque destes não é própria a natureza da rapina e da usura como costuma ser dentre os primeiros. Mas se por ventura o fosse, certamente seria já um capítulo à parte da história, um fato dos nossos tempos corrompidos por outras lógicas.

E é preciso rememorar e refletir, porque este mito parece simbolizar a dualidade antagônica estabelecida nos processos sócio-históricos: de um lado, os mais fortes, detentores e cultivadores de poder; do outro, os que somente querem estar e existir, mais fracos (...), sem grandes pretensões e que, circunstancialmente, constituem sempre a maioria.

Acredito ser necessário atentar para que quando surgiu esta tradição de arrogância, deve também ter aflorado, ao mesmo tempo, justamente, o inconformismo e a rebeldia difusa e em diferentes proporções: conflito permanente de várias tendências e formas, e que nos acompanha até hoje.

Marx classificou a isso como “luta de classes” e, para além do seu ativismo, profetizou um porto em que todos os navegantes, finalmente, inevitavelmente, chegariam equânimes: o comunismo. Mas, talvez, na ânsia de revolucionar, apressar este processo, transformar o injusto em justo, enxergou o homem tão somente como um animal produtor/consumidor. Desconfio que, paradoxalmente, desconsiderou seu caráter contemplativo e prático em evolução.

O homem, além de seu materialismo, possui uma faceta importante e inseparável que é o pensar, o produzir cultura, o comerciar ideias e se moldar segundo aquilo em que acredita.

Prescreveu a ideia de superestrutura, permitindo deduzir que somente os detentores hegemônicos do poder possuiriam a capacidade exclusiva de produzir mecanismos de cultura.

Já em Foucault, uma noção distinta desse sugerido axioma:


[...] não existe como matriz geral uma oposição binária e global entre dominadores e dominados, que se corpo social. Alerta para a necessidade de se supor a existência de correlações de força múltiplas que se formam e atuam nos aparelhos de produção, nas famílias, nos grupos restritos, nas instituições, servindo de suporte para grandes efeitos de clivagem que percorrem o conjunto do corpo social. (EIZIRIK, 2002; cit. 1995b).


Não há, portanto, uma via de mão única na construção de um edifício cultural sólido, onde seus engenheiros morem sem o risco de invasão dos construtores coordenados. E ainda nesta linguagem: se construírem tão sólido edifício, ele desmoronará, como desmoronaram, por exemplo, os edifícios intimidadores da antiga Roma, durante o neocolonialismo europeu e nas ditaduras totalitárias, que tentaram, sempre sem sucesso na concretização do intento, o fim último de fazer prevalecer uma cultura dita superior e pura, ignorando tudo o que a maior parte do mundo tinha a ensinar e a dizer. Valores jogados fora... E é certo que, sem dó nem piedade, todo o mundo perdeu alguma coisa com isso.

É bem verdade que destas empresas, sempre sobraram resquícios, alguns positivos. Mas o que importa agora é ter a convicção de que, àqueles que as noções predominantes rotulam como os mais receptivos consumidores da cultura, e que supostamente moldados à Deus-dará, são na verdade mais ativos em suas contribuições do que se pensou até bem recentemente. Também eles têm o poder de moldar, inconscientemente ou não, inclusive, os pretensos condutores da sociedade, porque nestes chegam efeitos que desencadeiam ações e refletem sinergias inevitáveis, dos quais os atingidos não podem se esvair nem controlar. Isso porque os mesmos tais vulneráveis, desacreditados, são realmente verdadeiros produtores da cultura, já que em maioria falam, fazem, reagem de uma forma ou outra. E porque selecionam o que querem e o que podem consumir, ouvir, ver, sentir... Sabem todos dizer sim ou dizer não, e dessa rede, ninguém se faz exclusivo. Aqui sugiro ainda a superação daquele mito revolucionário-burguês.

Neste sentido, nenhuma aspiração ancestral tornou-se pura. Longe disso, ao que mais se constata, é uma homogeneização lenta e gradual onde, ultrapassando o espaço da ágora formal, está presente em uma inimaginável ordem caótica. E se isso for para alguém motivo de decepção, vejamos por outro lado: o inevitável descontrole, em se falando de poder, pode significar justamente a maior reserva de segurança para a constituição de uma ordem democrática cada vez mais sólida.

Ora, a homogeneização dos poderes caminha para a remotamente aspirada democracia e nela estamos todos participando, seja lá da forma que for, porque se o déspota ou o corrupto agem com o aparato da força e da lei a seu favor, também outros elementos sociais promovem imperceptíveis e permanentes anarquias. O resultado é a intensidade de uma legítima democracia, progressivamente mais lapidada.

Sabe bem um professor que lida com muitos aprendizes, o quanto também está suscetível aos efeitos ou às respostas do universo de uma classe. Muitas vezes, a constância dos conflitos que exigem respostas imediatas leva todos os elementos de uma classe escolar a uma modelagem recíproca. E é justo mencionar a crença de que nisso também reside a qualidade do trabalho de um professor: na troca de modelos, nas conclusões diárias provenientes dessa reciprocidade.

Engana-se a autoridade que tenta incutir pureza ao espírito de um indivíduo ou de um grupo sem levar em conta o que estes têm a oferecer: a tal “educação bancária”. Ilusão... Quem o tentar fazer, encontrar-se-á frustrado, mais cedo ou mais tarde, porque antes de tudo, já temos clara a ciência de que o ser humano é um animal político. E é possível aí constar, de fato, a necessidade, não de estabelecer controles radicais, mas de se promover radicalmente as trocas constantes de razões e sentimentos.

Essa autoridade pode ser um professor ou um administrador distante, lá em seu gabinete. A diferença está no tempo do micro-processo em si, desde a ação empreendida até a inevitável reação. Tentar a pureza de qualquer modelo político ou cultural como matriz absoluta é insano, e muitos professores já o sabem. É que estes percebem as reações imediatamente seguidas de ocorrências permanentes, ao passo que quem está longe da rotina de uma sala de aula, não possui essa percepção. E se enganaria muito mais ao tentar erguer aquele tal edifício perfeito - longe disso... -, porque nunca estiveram afeitos a ouvir o que os verdadeiros professores, mestres de ofício, sabem ou pensam.

Muitos de nós já sabemos do erro de se projetar soluções desta natureza, e temos experiências históricas para nos reavivar a memória. Contudo, ainda há quem insista em introjetar ideologias à força, mas devem saber que o caminho das soluções à condição naturalmente humana, é considerar o poder manifesto por todos e em contínua interatividade.

Historicamente sabemos que toda vez que um extremo controle atinge seu ápice, revoluções emergem como que um choque que abala, transgride, corrompe e traz prejuízos. Quando o controle persiste, acaba em descontrole, e aí, uma reação derivada vem à tona: as 95 teses de Lutero, 1517; a Queda da Bastilha, 1789; a Revolução Russa, 1917; a Quebra da Bolsa de Nova Yorque, 1929; o 11 de Setembro, 2001; a crise do mercado norte-americano, 2007 etc.

Os físicos bem compreendem que se a força se concentrar num único campo, o desequilíbrio gerado busca uma nova revolução a fim de restabelecer o equilíbrio. Desta forma, a força, portanto, em toda natureza sensível, não deve se concentrar num único extremo. Incrivelmente, acreditando quase de forma ingênua ser nossa especificidade social um algo de energia diversa, relutamos em considerar essa lei. E apesar de toda memorável experiência, ainda há uma forte tendência em resolver as coisas no velho estilo, tanto na pretensão de um extremo como do outro.


Militarismo brasileiro x hippiesmo – o que esteve em jogo e qual foi o legado?


...já que um dia montei, agora sou cavaleiro,
laço firme e braço forte, num reino que não tem rei.
(“Disparada” - Geraldo Vandré e Theo de Barros, 1966)


A fim de conter o senso crítico que avançava velozmente no seio da sociedade brasileira e, sobretudo, no intuito de refrear as ações somadas que ameaçavam as estruturas políticas e econômicas daquele momento, eis que a última instância de controle foi ativada e posta em jogo, não como uma “bola da vez”, mas como o eixo principal e salvador de um projeto de contenção no Brasil daqueles anos.

O golpe militar de 1964 e dos anos subsequentes, foi sem dúvida um projeto orquestrado pelos interesses controladores de uma tradição que, sem se ter dado conta, agonizava os últimos suspiros de um ciclo histórico que chegava ao fim.

Neste processo, o mundo foi revolucionado pelos ânimos da maioria dos jovens do ocidente. Logicamente, na onda social do hippiesmo, como em outros levantes sociais, o padrão não fora desenhado por todos como a uma articulação inteiramente consciente, mas a partir da safra de seus muitos emanadores. A febre dos psicodelismos se generalizou acompanhada de antigos anseios contidos, e revelados pela ânsia da oportunidade coletiva de uma liberalização sentida, exaltada e possível.

Junto à negativa da persuasão despótica, receosa e pouco lúcida dos militares, pairava, bem debaixo de muitos olhos míopes, um característico entrudo de jovens incontroláveis, subversivos e tomados, como já sabemos, daquele típico impulso meio inconsequente, mas que justamente, também faz a roda girar.

Inconsequentes ou não, o fato é que mudaram os rumos da história mundial. Ao mesmo tempo que controladores arrogantes ultrapassavam limites territoriais com grande mobilidade, também os impulsos daquela geração de jovens avançavam os sinais vermelhos, trazendo com eles símbolos carregados de contestação e, principalmente, extremamente impactantes.


As pessoas na sala de jantar
estão preocupadas em nascer... e morrer
(“Panis et circenses” – Mutantes, 1968)


Cores fortes, de formas sinuosas, cheias e contornadas. Hinos eletrizados, com melodias nostálgicas e esperançosas, surpreendentes e telúricas. Busca pela experiência intensa que ultrapassava o meramente existencial, para muito, muito além do cair de uma montanha-russa descomunal. E tudo isso acompanhado da liberalização daqueles antigos anseios que a sociedade conformada estava habituada a resguardar com resignação: o homossexualismo, o fim dos preconceitos raciais e culturais, o basta ao sexismo, contra a intolerância religiosa, o naturalismo, o naturismo, o comunitarismo.

Foi aí que aprendemos a perceber que, para combater os velhos valores de uma sociedade conservadora, só uma força extravagante e irreverente de jovens determinados o bastante para chocar, unidos, não pela experiência, mas pelo desejo de avançar aos bloqueios.

Este momento histórico de êxtase coletivo permitiu-nos renovar os muitos valores caducos de uma ordem que persistia em prevalecer. Hoje a sociedade que antigos ideólogos contestadores objetivavam, está mais repleta daqueles auspícios, mesmo apesar de toda ação reacionária. E se tais ações permanecem ativas, seja com novas roupagens e em busca de outros instrumentos de poder, é porque também muitos avanços na direção da equidade humana já foram, realmente, possíveis de se alcançar.

Mas temos o dever de alertar com muito cuidado para um ponto de suma importância: “nem tudo o que proveio daquela onda, foram flores”.

Hoje as sociedades e os governos estão muito preocupados com a legalidade do casamento gay, com novas interpretações sobre tolerância na presença do imigrante e ao seu livre trânsito no mundo, dos ecumenismos em detrimento aos fundamentalismos religiosos, com as mais recentes aspirações ambientais em vias de sustentabilidade, com o advento de um presidente negro nos Estados Unidos, com a Lei Maria da Penha ou com o avanço de um movimento tardio de reforma agrária; tudo isso tem validade incontestavelmente positiva e tudo proveio daquele movimento. Mas disso, vejo que dois foram os legados que ameaçam em especial a sociedade brasileira: o desfacelamento da Família e o tráfico internacional de entorpecentes.


Em uma sociedade que historicamente se preocupou com o desenvolvimento de uma identidade própria, rebuscando especialmente nas culturas hegemônicas outro padrão que satisfizesse seus próprios interesses, o desprezo pela exclusão fabricada por parte de seus ancestrais brasileiros ganhava forma de outra tradição: “a tradição brasileira e mascarada da exclusão”, que inclusive, foi por algumas vezes reativada por interesses dominantes estrangeiros. Assim, o gérmen da exclusão passou ignorado pela maior parte das autoridades deste país, mas já estava incubado. E seria sim uma questão de tempo impreciso que estas faltas viessem à tona para exigir a justiça não prestada.


Alguma coisa está fora da ordem
Fora da nova ordem mundial...
(“Fora da Ordem” – Caetano Veloso, 1991)


Então eis que emergiu a mais ou menos recente onda que progride em meio ao som e às cores do hip-hop urbano, desdobrando-se ainda na batida do funk das favelas, juntamente ao armamento fácil e precoce, à banalização da vida e aos desejos consumistas imediatos de um grande contingente de miseráveis, que não por acaso, soçobraram de um longo processo histórico de exclusão. E veio esta onda forjando uma síntese inusitada composta de elementos contemporâneos: as amplas tecnologias que dinamizaram as comunicações, a força do poder de fogo, impulsos acríticos ampliados, massificação no uso de antigas e novas drogas, apologia à violência e ao sexismo. Apesar do choque causado, o hip-hop, o funk, com a pasmificação de um banditismo resgatado, vem com a força de um movimento de autoafirmação provindo também do primeiro e reformando de maneira natural os desequilíbrios sociais.


Há um tempo atrás se falava de bandidos
Há um tempo atrás se falava em solução
Há um tempo atrás se falava em progresso
Há um tempo atrás que eu via televisão
/.../
Oi sobe morro, ladeira córrego, beco, favela
A polícia atrás deles e eles no rabo dela
Acontece hoje e acontecia no sertão
quando um bando de macaco perseguia Lampião
E o que ele falava outros ainda falam
"Eu carrego comigo: coragem, dinheiro e bala"
Em cada morro uma história diferente
Que a polícia mata gente inocente
(“Banditismo por uma questão de classe”
Chico Science e Nação Zumbi)


Dessa forma, se o primeiro movimento caracterizou-se pelo choque romântico da rebeldia expressa no liberalismo e nas flores como bandeira, e que também foi importado – lembrando o tropicalismo como sua mais legítima expressão aqui no Brasil –, já o segundo, é igualmente rebelde, mas choca com seu tom ameaçador porque aparece dotado de jovens protagonistas violentamente armados, carentes e exigindo a urgência de socorro. Está aí... Um movimento legitimamente brasileiro.


De um lado o bandido, de outro a polícia...
Agora já era, tá na mão da milícia.
Nós avisamos dos porcos fardados
Mas nego é burro, burro...
E continua votando errado.
Valeu a experiência, valeu até a prisão
Mas o que valeu mesmo foi achar minha missão.
(“Pode acreditar (Meu laia laia)” - Marcelo D2 e Seu Jorge, 2009)


Não esqueçamos de observar o processo: aquele imenso grupo de pessoas ignoradas e controladas, de repente, de acordo com uma série de circunstâncias surpreendentes, tomou vulto de um fenomenal monstro ameaçador, mas não o clássico Leviatã espadado e coroado de Hobbes, e sim uma assombrosa e autêntica Mula-sem-cabeça, descontroladamente cuspindo fogo pelas ventas.

Não é difícil concluir, portanto, que um processo originalmente irradiado antes dos instintos do que pela razão, vem contrapor-se ao estabelecimento de qualquer força absoluta. O equilíbrio é sempre restabelecido, seja de uma forma, seja de outra. E agora, a pergunta: no que apostar então? um coletivo alienadamente conduzido, ou garantida sua liberdade consciente?

Se então, do movimento “hippiesta” nem tudo foi paz e amor, o segundo, com seu caráter aterrador, vem provocar a reformulação de uma nova síntese a partir das exigências de um coletivo quase que inteiramente “zumbi”: a construção de outras formas de conceber e aplicar a justiça. Trata-se aí, ao que tudo indica, de uma ação afirmativa para desenvolver, talvez pela primeira vez, a excelência da educação preventiva no lugar da punição, do punir pelo punir.

A fim de lançar uma reflexão entre os formadores da sociedade, sugiro atenção nesta observação: seriam tais movimentos reformadores disseminados por agentes cheios de carisma e ciência notáveis, que lançam suas sementes aos ventos até encontrar solo fértil, ou será que tudo insurge primeiramente dos ânimos rebelados pelas insatisfações. Eis aqui um ponto importante para nós, pois seria entender o que aflora primeiro na sociedade humana: o instinto ou a razão? Refletir sobre isso pode nos conscientizar mais acerca daquilo que é inato no ser humano, e também, ajudar a compreender melhor nossa função social.


Educação como mero instrumento de manipulação ou manifestação reguladora da equidade humana?

Não tendo uma noção de tais dinâmicas, o professorado enquanto indivíduos participantes, hoje, aqui no Brasil, pouco age por conhecimento de causa. Suas ações têm se diluído na interação das partes e estes passam como elementos mais conduzidos que condutores na concepção do desenvolvimento dos interesses comuns. Vejo a necessidade de se trabalhar para que o professor se veja apto a transcender à condição de reprodutor automatizado, para uma função consciente e ajuizada que atenda aos anseios do conjunto.

Fadar a classe dos professores aos interesses deste ou daquele grupo, é um erro. Primeiro por ir contra ao direito natural das manifestações democráticas e, segundo, por constituir um fomento ao desequilíbrio social.

Se hoje a classe dos professores está enquadrada ao cumprimento de funções tal qual uma peça fria de máquina, deve-se a isso os resquícios da lógica provinda dos governos centralizadores, que vieram trabalhando para estabelecer um amplo projeto de controle acrítico. Mas, uma parte deste projeto se efetivou, e outra não.

É efetivo quando, de fato, a classe dos professores, por exemplo, não consegue superar a antiga lógica política engendrada. Mas não é inteiramente efetivo devido ao caráter próprio e inerente à sociedade, que tende a desenvolver resistências, mesmo inconscientes, quando tais poderes invadem a dignidade que lhe resta. E talvez, geralmente, nem reste assim tanta dignidade, mas a dignidade que sempre resta, acaba por se renovar em mais um movimento inevitável de revolução.

Ora, o que quereria um governo humano que desconsiderasse a atuação de sua parte formadora pensante? Seria então o governo de outro organismo social que não humano, pois nossa natureza é livre e pensante; comporta, como um de seus eixos principais, a instituição Educação. Sem ela a sociedade já não seria humana, mas outra coisa, e no caso desta instituição não ter espaço para desenvolver-se, então já estaríamos falando de um lamentável retrocesso ou desvio.

É preciso ficar sempre atento para o caso de um governo, ou grupo, ou grupos estarem disputando o controle da educação visando a manutenção de seus interesses obtusos e não comuns ao todo - verdadeiro atentado à humanidade. Se houvesse a possibilidade de controle sobre a educação a ponto de neutralizar sua autonomia, o que veríamos seria uma sociedade inteiramente bestializada, acéfala, e se dentro disso ainda restassem formas de produção, não teria por si mais sentido algum à sociedade que concebemos nem à sociedade que almejamos.

Creio que ações de resgate de uma instituição tão fundamental assim, não devam se restringir a mais outro febril coletivo. Antes, necessário que seja acordado, sereno e sóbrio, como justamente evidencia nossa própria tradição, bem como, sobretudo, mnemônica e retórica. E sem tanto desespero, porque na especialidade que nos diz respeito, também nós evoluímos. Mas o que evoluiu paralelamente a esta secular gestação, é um mundo mais democrático onde, afinal, nos encontramos em melhores condições de atuação, o que se constitui num balanço extremamente positivo, porque assim ganham todos.

Colaborar com a formação de uma sociedade menos despótica, menos corrupta e menos gananciosa, seja pelo despertar da ética, da sensibilidade e da conscientização, é a missão que compete ao professor, e todo este trabalho, apesar das tantas crises sofridas, nunca se perdeu, pois é o responsável por grande parte de nossa verdadeira humanidade. Quero acreditar que seja chegado o momento de tocar as autoridades com a luz da coerência, que ensina que esta classe é uma das pedras fundamentais de nossa estrutura, que naturalmente não almeja o poder de controle, e por isso mesmo, merece e necessita o respeito e o apoio de todas as instâncias. O verdadeiro professor, que sente o chamado e se identifica com a causa, é por todos, e não por alguns poucos. Ele reconhece que a verdadeira sabedoria humana reside no equilíbrio das partes.


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