sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

COMPARAÇÕES SOBRE O FUNCIONALISMO DURKHEIMIANO E ALGUMAS POSSIBILIDADES ACERCA DO SETOR ESCOLAR NO BRASIL




COMPARAÇÕES SOBRE O FUNCIONALISMO DURKHEIMIANO E ALGUMAS POSSIBILIDADES ACERCA DO SETOR ESCOLAR NO BRASIL

 



Prof. Paulo Sergio Teixeira

O eminente historiador Peter Burke, em sua obra “História e teoria social”, deixou transparecer preocupação quanto à teoria funcionalista fundeada por Émile Durkheim, ao se referir a ela como “perigosa”.  Pareceu-me, de certa forma, um golpe meio baixo, pois Burke não teve a preocupação de explanar na obra o que o atormentava em relação a essa teoria.  Logo me coloquei a pensar no que consistiria este perigo.  Contudo, a partir deste seu trabalho, o que pude concluir não passou de suposições, pois a afirmação pareceu por demais superficial.
         Pensando essa afirmação, imaginei que o perigoso da interpretação funcionalista, seria a de que ela, no máximo, poderia vir a ser um engano ou então, somente uma perda de tempo histórico.
         Indo mais fundo, vi que a ideia estaria talvez fundamentada numa capacidade de o homem se tornar aquilo que queira ser de modo mais complexo, ou, em outras palavras: “que a consciência coletiva, formada pelas escolhas de cada indivíduo, seria capaz de orientar toda a coletividade para se tornar um organismo desta ou daquela forma, o que poderia traduzir-se no risco de um efeito positivo ou não”.
É certo que o homem carrega em sua natureza uma propriedade associativa, como já vimos entre os casos das meninas lobo.  A pergunta é: “estaria ao ser social permitido escolher conscientemente o melhor sistema de organismo coletivo, ou isso seria uma operação exclusiva da natureza?”.
         Observando a complexidade dessa mesma natureza sensível, podemos concluir sem muita dificuldade, mesmo dentro de uma condição existencial própria do que nos foi legado, que dispomos de fato, pelo menos, “da capacidade de fazer escolhas, de escolher caminhos”.
         Mas parece coerente supor que a consciência coletiva pode elevar-se qualitativamente à medida que investirmos mais no esclarecimento dos indivíduos que formam essas sociedades, e isso sim aponta realmente para uma evolução social dos homens.  É que ao colaborarmos com a elevação de uma cultura intelectual e emocional dos indivíduos, estaríamos ajudando a desenvolver um coletivo mais desperto, sobre tudo o que o cerca e sobre si mesmo e, consequentemente – como defendiam John Dewey, Anysio Teixeira, Paulo Freire –, seria o fomento a uma sociedade mais livre, comprometida e atuante também.
         Dentro da cômoda interpretação de uma sociedade polarizada, onde se disputariam os mais aptos e os menos aptos no velho evolucionismo social de Spencer, aparentemente poderíamos supor que essa mesma consciência coletiva trabalharia, primeiramente, para uma sociedade de homens totais como queriam Schopenhouer, Freud, Nietzsche e outros, driblando todas as convenções que a sociedade criou desde a célula familiar e que extrapolou para um imenso organismo social que já é, de fato, coeso.  Ora, uma sociedade de homens totais, não traduz em nada a ideia de harmonia, de uma sociedade integrada e coesa, mas a de homens tão livres, libertinos e inconsequentes, que a mim mais parece a maior de todas as utopias.  Uma sociedade de mercenários? – quem ou o quê os sustentaria?  Para que isso pudesse se efetivar, teríamos que voltar à barbárie ou a um tipo de involução, o que é muito menos provável.
         Na proposta de Marx, reinterpretada segundo a visão de Durkheim, a sociedade estaria orientada para uma forte consciência coletiva, o que determinaria que o organismo social funcionasse, em seu ápice, de maneira perfeitamente homogênea.  É uma proposta que provavelmente neutralizaria as desigualdades sociais, mas parece que o trabalho do operário na fábrica daqueles anos, deu a Marx uma noção equivocada de humanidade, onde a máquina tinha um objetivo, as pessoas teriam cada qual um objetivo, mas acabariam todos com pouca qualidade de vida consistente.  Isso porque essa imensa máquina social, enxuta, visando não entrar em colapso, estaria equilibrada a tal ponto que nada faltaria, nem nada sobraria, mas também, não permitiria aos membros da sociedade sair do lugar.  Acabaríamos inertes, sem mobilidade social, sem escolhas livres e, talvez, sem expectativas de expansão.
         Na interpretação de Émile Durkheim, a sociedade estaria dividida por campos funcionais que formariam um grande sistema de órgãos integrados.  Durkheim aponta para uma sociedade humanizada e coesa por esta possuir e aprimorar diferentes especializações, o que, para tal, só seria possível com a liberdade de escolha que cada indivíduo poderia fazer.  Que a força de uma consciência coletiva seria menor, menos coercitiva, ao passo que o indivíduo, sendo menos influenciado por essa mega-consciência coletiva doaria, portanto, mais de si à sociedade.  Em seus trabalhos, um dos pontos centrais, a “amálgama social”, sempre esteve focado na “solidariedade” real entre os seres humanos.
Talvez o temor que Peter Burke tenha expressado, esteja fundamentado numa visão mais ampla do funcionalismo, onde seria estabelecida uma espécie de divisão que impossibilitasse a liberdade do ser social de integrar-se a esta ou àquela funcionalidade por algum tipo de limitação à mobilidade social.  Por exemplo: que uma pessoa fizesse parte de uma linhagem que o definiria como operário, sem possuir para sempre a capacidade de ser um administrador, ou um técnico, ou um intelectual.  Na verdade, creio que é mais ou menos por aí que realmente aquele autor se atemorizou quanto a uma “adoção consciente” que um sistema funcionalista poderia acarretar, chegando por fim, a uma sistemática sociedade de castas, ou mais além: de “biocastas”.
         Bem, aí vejo quatro questões a se considerar num primeiro momento:
1.   o código inato condicional da criança e o código moral adquirido;
2.   as aptidões desenvolvidas na juventude;
3.   as preferências livres do indivíduo;
4.   as facilidades tecnológicas de suporte ao indivíduo adulto;
5.   a cultura coletiva e o ambiente em que o indivíduo se vê inserido.

Como professor de pré-adolescentes e adolescentes, o que tenho observado é já uma predileção pela competição; uma predileção pela concentração; uma predileção pela comunicação; uma predileção pela descontração etc. – e Gardner começa a pensar isso muito bem.  Pela experiência, observei também que algumas potencialidades e habilidades podem ser despertadas, mas que no mundo dessa fase da vida, a convivência pode levar ao hábito, e isso é um ponto fundamental a ser considerado.  Tal convivência ganha contornos no lar, mas no convívio da escola, que é o primeiro exercício prático e mais amplo de sociedade e cidadania, os jovens são capacitados a trocar experiências e formar uma conduta coletiva.  Então, o inato e o hábitus têm um peso, o exercício tem um peso e a cultura aberta tem um peso; tudo isso tem grande peso na conduta e nas escolhas de cada indivíduo.  Mas absolutamente, estamos certos de que o ser humano, segundo sua capacidade, não está limitado a exercer suas funções somente a este ou àquele setor específico; antes apto a inserir-se livremente no setor que mais lhe agradar e que mais se identificar – inclusive, é isso que esperamos. 
Dentro de uma analogia entre um ser humano e uma célula corporal – muito típica em Durkheim –, não estaríamos fadados a exercer uma função como uma célula pronta e específica e pré-destinada deste ou daquele órgão corporal, mas em nossa infância, como as versáteis células-tronco que têm a capacidade de se transformar na célula que qualquer parte do corpo (social) necessitar.

O sucesso da solidariedade orgânica, segundo Durkheim, conta com a liberdade de escolha dos indivíduos e com um número cada vez maior de especializações para que esta mesma sociedade se torne viável a cada um.

A [sociedade mecânica] só é possível na medida em que a personalidade individual é absorvida na personalidade coletiva; a [sociedade orgânica] só é possível se cada um tiver uma esfera de ação própria, por conseguinte, uma personalidade.  É necessário, pois, que a consciência coletiva deixe descoberta uma parte da consciência individual, para que nela se estabeleçam essas funções especiais que ela não pode regulamentar; e quanto mais essa região é extensa, mais forte é a coesão que resulta dessa solidariedade.  De fato, de um lado, cada um depende mais estreitamente da sociedade quanto mais dividido for o trabalho nela e, de outro, a atividade de cada um é tanto mais pessoal quanto mais for especializada.  Sem dúvida, por mais circunscrita que seja, ela nunca é completamente original; mesmo no exercício de nossa profissão, conformamo-nos a usos, a práticas que são comuns a nós e a toda nossa corporação.  Mas, mesmo nesse caso, o jugo que sofremos é muito menos pesado do que quando a sociedade inteira pesa sobre nós, e ele proporciona muito mais espaço para o livre jogo de nossa iniciativa.  Aqui, pois, a nossa individualidade do todo aumenta ao mesmo tempo que a das partes; a sociedade torna-se mais capaz de se mover em conjunto, ao mesmo tempo em que cada um de seus elementos tem mais movimentos próprios.  /.../  De fato, cada órgão aí tem sua fisionomia especial, sua autonomia, e contudo a unidade do organismo é tanto maior quanto mais acentuada essa individuação das partes.  Devido a essa analogia, propomos chamar de orgânica a solidariedade devida à divisão do trabalho (DURKHEIM, 1999, p.108).

         Por este trecho fica claro que Durkheim identifica dois tipos de organismo social: um que tem forte coerção coletiva sobre o indivíduo, e a outra que se faz coesa pela ação mais efetiva dos indivíduos sobre o corpo social.  Ele não nega sua preferência pela segunda via, que estaria mais próximo ao atual estágio da sociedade, e aponta que a grande vantagem, neste caso, seria justamente a mobilidade social, a liberdade de escolha sobre uma função e a possibilidade de atuação integrada dos indivíduos num universo de instituições ou corporações (os “órgãos sociais”).
         Em “Da divisão do trabalho social”, Durkheim apresenta, através de exames antropológicos colhidos em seu tempo, conclusões de que a “sociedade mecânica”, como ele a define, ou seja, a sociedade com baixa energia individual e forte coesão coletiva propiciada pelos costumes morais, foram por ele reconhecidas como as primeiras sociedades clâmicas, próximas ao que chegaríamos numa hipotética sociedade comunista futura.  Então, podemos deduzir, segundo sua visão, que o comunismo não seria um desdobramento natural e progressivo de nossa sociedade, mas, em se falando de estágios sociais, a forma mais primitiva de sociedade humana que se conhece e que já teria sido superada.
         A criação do “Estado”, seja em meio à sociedade capitalista, seja em meio ao socialismo, viria mais tarde, como uma criação mais recente, e partindo dessa observação o cientista compreende a sociedade moderna como um corpo em que, analogicamente, o Estado ocuparia o lugar central – como um cérebro – integrado aos outros órgãos ou setores do corpo social.
         Faz-se mister apontar que essa visão do Estado como um cérebro ou campo central, não significaria compreendê-lo como o órgão mais importante dentre todos os outros setores, mas tão necessário, dentro de suas funções específicas, como todos os outros com suas próprias especialidades.
         A meu ver isso é formidável, porque ao se fazer essa comparação somos capazes de compreender a sociedade democraticamente constituída, muito mais responsável e engajada dentro de suas especialidades.  Responsáveis e não comandadas por um governo intransigente, mas antes, tão somente parte constituinte moderadora que só subsistiria dentro dos consensos democráticos.  Sob este prisma, somos todos livres e o único limite que nos serve de parâmetro, são os objetivos, interesses e metas de cada setor e do corpo social como um todo.  Vejo realmente como formidável nessa visão, que o sucesso deste sistema, ainda que em evolução, é a possibilidade de conscientização franca que cada indivíduo, cada setor funcional e todo o conjunto poder paulatinamente se aprimorar.
         Contudo, o funcionalismo é, acima de tudo, uma teoria interpretativa, mas nos oferece, ao menos neste ponto, a possibilidade de escolher por uma sociedade de um coletivo que não nos possibilite a mobilidade social ou uma que nos garanta agir com mais liberdade, mas dentro de certos parâmetros estabelecidos no consenso da própria sociedade.

Émile Durkheim é frequentemente achacado pela alcunha de “positivista retrógrado”, tradicionalista, reacionário ou coisas do gênero.  Um grande engano!  Durkheim foi sim seguidor de August Comte, que de especializar-se primeiro no estudo das sociedades humanas, acabou por entrar para a história como o “Pai da Sociologia”.  De fato, foi ele mesmo quem a fundou, mas as rusgas que imperam sobre Comte estão na sua visão polêmica da “doutrina positivista” – uma espécie de primeiro degrau das ciências do século XX.  Também pudera tanta polêmica: Comte, em sua doutrina, queria estabelecer uma espécie de “Religião das Ciências”, mas isso não passou de uma febre de algumas décadas e que envolveu grande safra de cientistas da virada do século.
Durkheim foi mais além, mais profundo; centrou suas preocupações muito mais naquilo que nos importa: “a interpretação da sociedade humana e suas possibilidades”.  Na minha opinião, Émile Durkheim foi um autêntico cientista das Humanidades, pois soube equilibrar o rigor científico com o olhar intuitivo do espírito.  Quanto ao seu estigma de positivista retrógrado lapidado pela maioria dos críticos, afirmo apenas que em suas obras encontramos soluções muito interessantes que podem e devem ser consideradas no sentido de aprimorar os estudos àquilo que deve nos servir.
         Apesar dessas colocações, é fundamental apontar a grande crítica sobre o positivismo durkheimiano na Ecuação.  Ela se pauta, sobretudo, na visão que Durkheim expõe sobre a função da escola para a sociedade em sua obra “Educação e Sociologia”.  O grande ponto de discóidia pode ser bem traduzido pelo trecho a seguir:

/.../ De fato, este ser social não somente não se encontra já pronto na constituição primitiva do homem como também não resulta de um desenvolvimento espontâneo.  Espontaneamente, o homem  não tinha tendência a se submeter a uma autoridade política, respeitar uma disciplina moral, dedicar-se e sacrificar-se.  A nossa natureza congênita não apresentava nada que nos dispusesse necessariamente a nos tornarmos servidores de divindades, emblemas simbólicos da sociedade, a lhes prestarmos culto ou as nos privarmos para honrá-las.  Foi a própria sociedade que, à medida que ia se formando e se consolidando, tirou de seu seio essas grandes forças morais, diante das quais o homem sentiu a sua inferioridade.  Ora, com exceção de tendências vagas e incertas que podem ser atribuídas à hereditariedade, ao entrar na vida, a criança traz apenas a sua natureza de indivíduo.  Portanto, a cada nova geração, a sociedade se encontra em presença de uma tabula quase rasa sobre a qual ela deve construir novamente.  É preciso que, pelos meios mais rápidos, ela substitua o ser egoísta e associal que acaba de nascer por um outro capaz de levar uma vida moral e social.  Esta é a obra da educação, cuja grandeza podemos reconhecer. /.../ (DURKHEIM, pp.54-55, 2011).

“Inculcar crianças como meras tábulas rasas” – expressão não infeliz, mas antes típica de um contexto histórico vivido pelos contemporâneos de Durkheim.  Muito mais importante do que resumir todo o trabalho do cientista a uma frase que sintetize, supostamente, todo o seu pensar, é conferir acima de tudo dois pontos: 1. Que para além de frases conclusivas, todo seu trabalho é repleto e profundo, chegando a nos espantar tamanha percepção no que diz respeito à interpretação da sociedade humana; 2. Que suas interpretações não são dogmáticas e que primeiramente são interpretativas, inclusive sugeridas muitas vezes pelo autor como passíveis de mudança, visto que um dos pontos sempre apontados por Durkheim, são as diferenças de época: fases históricas; fases na vida dos indivíduos; fases sociais etc.  Para Durkheim, a sociedade humana está em permanente transformação.

Bárbara Freitag, em sua tese de doutoramento em Política Educacional Brasileira, de 1972 – que resultou no excelente trabalho “Escola, Estado e Sociedade” –, nos propõe uma visão de superação da educação positivista, denunciando Durkheim e Parsons como defensores de uma sociedade que preserva as diferenças de classes em sua concepção.  Ela instiga, a partir daí, uma compreensão das políticas educacionais baseada nos princípios do “conflito” como forma de superação das diferenças sociais.  Assim, a Dra. Bárbara não entende como princípio essencial para a educação, uma base moral estática que mantenha os valores sociais na permanência, na reprodução de suas normas, mas defende que a escola tem um papel transformador e superador do status quo que determina a distância entre dominadores e dominados.  B. Freitag foi grande crítica do conservadorismo na escola propagada por Durkheim. 
Comparando Émile Durkheim, Parsons (funcionalistas), Dewey (democrata, progressista, pragmático), Gramsci (marxista), Passeron, Bourdieu (estruturalistas), Althusser, Poulantzas, Establet (marxistas estruturalistas), escolas reacionárias da economia da educação e seus críticos, entre outros, Freitag torna-se uma referência fundamental ao entendimento de nossos processos histórico-pedagógicos, pois traz, a partir de novas interpretações e comparações, uma visão muito clara sobre as forças que delinearam as políticas da educação nacional no decorrer dos anos 1970 até a efetivação deste seu trabalho, já nos anos 1980.
Realmente, a visão funcionalista não enfoca condições de “conflito social” como ação necessária à transformação social, mas antes traduz a sociedade como um organismo vivo que funciona naturalmente segundo a presença identificada de certas leis, ora aparentemente inertes, ora, de certo modo, dinâmicas.
Mas ao interpretar a sociedade orgânica, onde um certo tipo de tradição também tem um papel determinante para seu funcionamento, Durkheim, apesar de não se ater a isso com a devida atenção, propõe uma ação importante que deveríamos ter a sensibilidade de notar: “é inevitável a permanente autoconstrução de uma nova moral social, que antes de tudo, é o que nos resguarda e nos preserva enquanto humanidade”.
O que Dewey e outros pró-democratas como Anísio Teixeira queriam desenvolver na escola, para além de uma crítica conceitual, seria justamente isso: “formar uma nova moral verdadeiramente democrática que reorientasse a sociedade”.  Isso pode ser traduzido como a transferência ou aperfeiçoamento de uma moral opressiva por uma moral participativa, e ainda, como Dewey propunha: “não a igualdade entre os homens, mas a igualdade de oportunidades”.  Então estes da linha democrática, ao criticar o caráter tradicionalista das ideias de Durkheim e de Parsons, estavam na verdade muito em compasso com eles ao propor reformas nos costumes sociais.
Também é interessante uma tentativa de desmistificação, dentro da visão funcionalista, que não caberia “exclusivamente” ao setor educacional a função equalizadora das diferenças entre as classes sociais como ensejam alguns libertários.  Na verdade, a ação do setor educacional parece ser muito menor se comparado ao papel do Estado.  Este estaria muito mais apto a regular a equalização das classes sociais por meio de ações consensuais e concretas, desde que esta seja sua diretriz político-ideológica e que, como sabemos, dentro do sistema democrático, constitui-se no resultado das preferências majoritárias da população, ou melhor dizendo: nas predisposições e nas possibilidades naturais, inclusive as de “conflito”.  Ter consciência suficiente e estar capacitado a entender e escolher o melhor jogo político que lhe convenha, explicaria um dos mais importantes papéis da escola: “oferecer subsídios para que o cidadão esteja apto a fazer suas próprias escolhas”.  O cidadão, quando consciente de si e do que o cerca, vê-se capaz de construir sua própria história e a cultura social em que quer estar inserido.  Mas cabe aqui um adendo importante: claro que o corpo educacional não é neutro em nenhuma sociedade e a ele cabe grandes responsabilidades.
Não podemos cometer o erro, muitas vezes preconceituoso, de desconsiderar os prestimosos efeitos da concepção conflitualista que, no Brasil, começou a insurgir e se desenvolver com os primeiros anarquistas imigrantes da virada do século XIX para o XX, e que se desdobrou com uma série de ações sempre presentes a partir daí, redefinindo as políticas sociais em prol de uma equalização progressiva das classes sociais, sem as quais não teríamos possibilidade de mobilidade que historicamente podemos conferir na construção da democracia.
Assim, pensamos ser imprescindível conciliar a visão funcional ou orgânica da sociedade, com conscientização e ações de enfrentamento, que vise a equalização das diferenças sociais dentro de um sistema efetivo de participação democrática.  Se analisarmos detidamente os movimentos dos últimos governos estatais, não será muito difícil concluir que é neste sentido que a atual sociedade, já dentro de um consenso legitimado pela maioria, está construindo sua história.
E veja-se que, em meio a estas últimas ações governamentais e à nova orientação da maioria da população possibilitada pelos novos paradigmas de interação social, estamos, naturalmente, agindo dentro de uma nova moral, melhor e mais elevada do que antes (como sugeriu Durkheim); de um ambiente progressivamente democrático (como pelo que militavam A. Teixeira e Dewey); e uma crescente mobilização nos moldes do enfrentamento direto, sempre que necessário (como vieram incentivando e esclarecendo os remanescentes libertários).
Citado num manual de preparação de gestores escolares da cidade de Salvador-BA, segundo os novos parâmetros descentralizadores do poder central vertical, conferidos na Constituição de 1988 e na LDB/96, é possível perceber que essa tendência de uma nova síntese já se opera no setor educacional brasileiro e se efetiva de maneira ascendente expressas nas mobilizações sociais.  Vamos conferir:

Tomando como base a análise de Bárbara Freitag (1980), podemos dizer que as teorias sociológicas apontam três caminhos para situar a escola na sociedade e consequentemente definir sua função social.

1º) A sociedade é que determina as características da instituição escolar, pela sua força coercitiva, e a escola serve para socializar os indivíduos, moldando-os às regras e normas sociais [Durkheim];

2º) A escola é um instrumento de transformação social e para isso deve tornar-se uma comunidade democrática exemplar, de modo a propiciar às novas gerações a vivência do jogo democrático e as condições para atuar na sociedade de forma transformadora [Dewey];

3º) A escola é um espaço de mediação de conflitos.  Nela estão presentes os diversos interesses e as diferentes forças sociais, e é no embate entre as ideias conservadoras e as transformadoras que a escola educa as novas gerações [neo-marxistas].

(SECULT, p.84, [s.d.])

         Podemos entender com isso, o quanto a velha ideia da “escola literária antropofágica” está presente e nos permite construir uma sociedade tão ímpar.  Estamos conseguindo um feito surpreendente: conciliar doutrinas políticas e sociológicas historicamente antagônicas, num tipo único de democracia.  Só um povo mestiço e de ideias misturadas poderia se unificar com tanto ecletismo.


                                                                      Santos/SP, 15 de janeiro de 2016.

                                                          Prof. Paulo Sergio Teixeira


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Fontes e bibliografia:

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SECULT Salvador.  Curso de gestão escolar – módulo II: A Escola como Núcleo de Gestão.  Salvador, BA: UNICED, [s.d.].